Ramana Maharshi, o santo hindu
1)
Heinrich Zimmer vinha se interessando há muitos anos pelo Maharshi de Tiruvannamalai, e a primeira pergunta que me fez, quando voltei de minha viagem à Índia, foi a respeito desse novo santo e sábio da Índia Meridional. Não sei se meu amigo considerava um pecado imperdoável, ou pelo menos incompreensível, de minha parte, o fato de não ter ido visitar Sri Ramana. Minha impressão era de que dificilmente ele teria deixado de fazer tal visita, tão calorosa era a sua participação na vida e no pensamento desse santo. Isso não me surpreendia, porquanto eu sabia com que profundidade Zimmer penetrara no espírito da Índia. Seu mais ardente desejo, que era o de ver a Índia pessoalmente em sua realidade, infelizmente não chegou a materializar-se, e a oportunidade que teve para isso desvaneceu-se às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Ele possuía uma visão grandiosa da Índia espiritual.
Zimmer me proporcionou, num trabalho de colaboração, inestimáveis conhecimentos da alma oriental, não só pela sua especialização, como principalmente por sua compreensão genial do sentido da mitologia hindu. Cumpriu-se, infelizmente, o ditado segundo o qual os prediletos dos deuses morrem prematuramente, e resta-nos apenas lamentar a perda de um espírito que venceu as limitações de um saber especializado e, voltado para a Humanidade, proporcionou-lhe o beatificante dom de “frutos imorredouros”.
O depositário da sabedoria mitológica da Índia tem sido, desde os tempos mais remotos, o “santo”, designação ocidental que não expressa com fidelidade a essência e a maneira de se manifestar dessa figura paralela do Oriente. Essa figura corporifica a Índia espiritual, e a encontramos muitas vezes na literatura. Por isso, não é de admirar que Zimmer se interessasse apaixonadamente pela encarnação mais recente e mais perfeita desse espécime na pessoa de Sri Ramana. Ele via nesse yogi a realização avatárica da figura ao mesmo tempo lendária e histórica do rishi, o vidente e filósofo perambulante através dos séculos e dos milênios.
Tudo indica q eu deveria ter visitado Sri Ramana. Receio, porém, que me acontecesse a mesma coisa, se eu tivesse de voltar à Índia para recuperar as oportunidades perdidas, ou seja, que, não obstante se tratar de um tipo único e irrepetível, me faltasse, mais uma vez, o ânimo de visitá-lo pessoalmente, ainda que seja inegável o fato de tratar-se de figura de grande significação. Gostaria, no entanto, de dizer que duvido de sua irrepetibilidade. Ele é um tipo que existiu e sempre existirá. Por isso achei desnecessário visitá-lo. Vi-o por toda parte, na vida e na figura de Ramakrishna, nos discípulos deste último, nos monges budistas, nos personagens da vida cotidiana da Índia, e as palavras de sua sabedoria são o sous entendu (o substrato) da vida da alma da Índia. Nesse sentido, não há dúvida de que Sri Ramana é um hominum homo, um verdadeiro “filho do homem” da terra hindu. É autêntico e, ainda mais, é um fenômeno que, visto na perspectiva da Europa, reivindica sua singularidade. Mas na Índia ele é o ponto mais alvo de uma superfície alva (cuja alvura só mencionamos porque existem outras tantas superfícies negras). Na Índia, ademais, vê-se tanta coisa que afinal se gostaria de ter visto muito menos, e a imensa variedade de regiões e de tipos humanos produz um desejo profundo de simplicidade. E também existe simplicidade na Índia: ela impregna a vida psíquica do hindu como um perfume ou uma melodia: sempre a mesma em toda a parte, mas nunca monótona e sim variando sempre ao infinito. Para conhecê-la, basta ler uma Upanishad ou alguns diálogos de Buddha. Neles ressoa o eco do que se ouve por toda parte, falando-nos através de milhões de olhos e expressando-se em um sem número de gestos. E não há aldeia nem estrada principal que não tenha aquela árvore de largos ramos a cuja sombra o ego não busque sua própria supressão, afogando no universo e na unidade comum o mundo da multiplicidade das coisas. Eu senti esse apelo na Índia a tal ponto, que depois não conseguia desvencilhar-me de sua força persuasiva. Eu estava, portanto, convencido de que ninguém era capaz de superá-lo, e menos ainda o sábio. E se Sri Ramana dissesse alguma coisa que destoasse dessa melodia, ou pretendesse saber mais do que isso, em qualquer das hipóteses o iluminado estaria errado. Foi essa laboriosa argumentação, perfeitamente concordante com o calor do clima da Índia Meridional – se o santo está certo, ele reproduz fielmente o antigo tom da Índia; se lhe empresta uma nota diversa, está errado – que me impediu de visitar Tiruvannamalai, e disso não me arrependi.
Foi justamente esse caráter impenetrável da Índia que me proporcionou a ocasião de encontrar o santo, e isso de maneira muito mais cômoda para mim, e sem que o tivesse procurado: em Trivandrum, capital de Travancore, encontrei um dos discípulos do Maharshi. Era uma figura humilde e seu status social, o de um professor primário, fez-me lembrar vivamente o sapateiro de Alexandria que foi apresentado (na descrição de Anatole France) a Santo Antão, pelo anjo, como um modelo de santo muito mais perfeito do que ele. Meu pequeno Santo tinha, em relação ao grande, a vantagem de ter de alimentar numerosa prole e de cuidar, à custa de muito sacrifício, dos estudos de seu filho mais velho. (Não pretendo desviar a atenção para o problema de saber se os santos são sempre sábios e, vice-versa, se os sábios são sempre santos. Há algumas dúvidas a esse respeito). Seja como for, nessa figura humilde, amável e piedosa como uma criança, encontrei um homem que sorveu, de um lado, e com toda a dedicação, a sabedoria do Maharshi, e, de outro, superou seu próprio mestre, por ter “comido o mundo”, apesar de toda a sua circunspecção e santidade. Considero esse encontro como uma grande gratidão, pois nada de melhor poderia ter-me acontecido. O puro sábio e o puro santo me interessam tanto como um raro esqueleto de sáurio, incapaz de me comover até às lágrimas. Mas fascinou-me a estranha contradição entre o seu ser subtraído à maya (ilusão) no si-mesmo cósmico e a fraqueza amorosa que mergulha fecundamente suas raízes na terra negra, para repetir, como eterna melodia da Índia, para sempre o trabalho de urdidura e o do rasgar-se do véu; sim, essa contradição me fascinou, pois, de outro modo, como se poderia ver a luz sem a sombra, sentir o silêncio sem o barulho, alcançar a sabedoria sem a estultícia? Não há dúvida de que a mais dolorosa experiência é a da santidade. Nosso homem – Deus seja louvado – era apenas um pequeno santo: não um cume se projetando por sobre abismos tenebrosos, nem um jogo emocionante da natureza, mas uma demonstração de que a sabedoria, a santidade e o humano podem “conviver harmoniosamente entre si”, numa relação rica de ensinamentos, amigável, pacífica, sem convulsões nem singularidades, sem espanto nem sensacionalismo de qualquer espécie, e sem necessidade de uma agência especial de correio; mas cultura a brotar de suas raízes mais antigas e primitivas, envolta na atmosfera suave e inebriante dos coqueiros que balouçam ao sopro do vento marinho, sentidos mergulhados na fantasmagoria do ser, correndo soltos e em disparadas: libertação da escravidão, vitória na derrota.
É na literatura que melhor se apresenta a pura santidade e a pura sabedoria, e aí sua fama está fora de discussão. No Tao Te King lê-se o que de melhor nos oferece Lao Tsé. Mas um Lao Tsé celebrando o entardecer de sua vida em companhia de uma dançarina na vertente ocidental da montanha já é menos edificante. É impossível, por razões facilmente compreensíveis, concordar com o desprezo do corpo do puro santo, especialmente quando se acredita que a beleza está incluída entre o que de mais nobre Deus criou.
As idéias de Sri Ramana são de agradável leitura. Nelas encontramos a Índia mais pura, com sua aura de eternidade, arrebatada e ao mesmo tempo nos arrebatando do mundo, um cântico dos milênios que reproduz, como o cantar dos grilos numa noite de verão, as vozes e os sons de milhares de seres. Essa melodia é construída sobre o único grandioso tema que, dissimulando sem esmorecimento sua monotonia em reflexos de mil cores, rejuvenesce eternamente no espírito da Índia, e cuja encarnação mais recente não é senão o próprio Sri Ramana: é o drama do ahamkara (a “formação do ego” ou da consciência do eu) em sua oposição e em sua indissolúvel união com o Atman (o si-mesmo ou o non-ego). O Maharshi também denomina o Atman do “Eu-Eu”, muito significativamente, portanto, visto que o si-mesmo é sentido como sujeito do sujeito, como a verdadeira fonte e o verdadeiro canal do eu cuja aspiração constante (e errônea) é apropriar-se daquela autonomia cuja percepção deve justamente ao si-mesmo.
Esse conflito também é conhecido pelo ocidental: para este, trata-se da relação entre o homem e Deus. A Índia moderna assumiu em larga escala, e posso confirmá-lo por minha própria experiência, a terminologia européia: o “si-mesmo”, ou Atman, e Deus são termos essencialmente sinônimos. Mas, com uma certa diferença em relação ao binômio ocidental “homem e Deus”, tanto a oposição como a concordância estão expressas nos termos “eu e si-mesmo”. Ao contrário do conceito de “homem”, o conceito de “eu”, como se nos configura, é marcadamente psicológico. Por isso, estaríamos inclinados a pensar que o problema metafísico “homem e Deus” foi deslocado para o plano psicológico. Mas, se pensarmos bem, verificaremos que não é assim, pois a noção hindu de “eu” e de “si-mesmo” não é propriamente psicológica, mas – poderíamos dizer – tão metafísica quanto a de “homem e Deus”. Falta ao hindu, tanto quanto à nossa linguagem religiosa, a perspectiva da teoria do conhecimento. O hindu é ainda “pré-kantiano”. Essa complicação é desconhecida na Índia, como também entre nós, em amplos setores. Por isso não há na Índia uma psicologia, no sentido ocidental do termo. A Índia é “pré-psicológica”, isto é, quando fala no “si-mesmo”, ela o pensa como objetivamente existente. A psicologia não faz assim. Com isso não pretende negar, de modo algum, a existência do conflito, mas reserva para si a pobreza ou a riqueza do seu desconhecimento acerca do si-mesmo. Não resta dúvida de que temos uma fenomenologia sui generis e paradoxal do si-mesmo, mas percebemos muito bem que identificamos algo de desconhecido através de meios limitados, e o expressamos em estruturas psíquicas sem saber se elas são adequadas ou não à natureza daquilo que queremos conhecer.
As limitações inerentes à crítica do conhecimento nos distanciam daquilo que designamos pelas expressões “si-mesmo” ou “Deus”. A equação “si-mesmo = Deus” parece repugnar ao pensamento europeu. Por isso, ela é, como o demonstram as afirmações de Sri Ramana e muitas outras, um conhecimento especificamente oriental, e a psicologia nada tem a acrescentar-lhe, fugindo inteiramente à sua competência estabelecer uma tal distinção. Psicologicamente, a única afirmação que se pode fazer é que o “si-mesmo” apresenta uma sintomatologia religiosa parecida com a daquele complexo de afirmações que vem associado ao termo “Deus”. Embora o fenômeno religioso da “emoção” ultrapasse os limites da crítica do conhecimento, por ser-lhe incomensurável, aspecto esse que tem em comum com todas as manifestações de caráter emocional, o impulso humano em direção ao conhecimento impõe-se constantemente, com uma pertinácia e uma teimosia “antidivina” ou “luciferiana”, e mesmo com uma certa necessidade, para lucro ou dano do homem pensante. Por isso mesmo, mais cedo ou mais tarde o homem se oporá numa atitude puramente cerebral à sua emoção e procurará subtrair-se ao jugo do impulso emocional, para poder perceber o que lhe acontece. Se agir com circunspecção e consciência, ele tornará a descobrir que pelo menos uma parcela de suas experiências representa uma interpretação humanamente limitada, tal como a visão da serpente de muitos olhos, de Inácio de Loyola, que inicialmente ele julgou de natureza divina, concluindo mais tarde que provinha do diabo(2). Para o hindu, é evidente que o si-mesmo não se distingue de Deus, como fonte psíquica, e que o homem, por se achar em seu si-mesmo, não apenas está contido em Deus, como também é o próprio Deus. Sri Ramana, por exemplo, é explícito a esse respeito. Não há dúvida de que essa equação é uma interpretação. Como também é uma interpretação conceber o si-mesmo como o “Sumo Bem” ou como a finalidade plenificante e desejável, embora a fenomenologia dessa experiência não permita duvidar que essas características são partes integrantes, essenciais e prévias da emoção. Mas isso também não impede que a razão crítica levante a questão da validade dessas qualidades. Na verdade, é impossível saber como ela poderá responder a essa questão, pois lhe falta qualquer critério. O que talvez pudesse servir de critério está também sujeito, por seu lado, ao problema da validade. Aqui só a preponderância do fato psíquico é que decidirá.
O objetivo da prática oriental é idêntico ao da mística ocidental: desloca-se o centro de gravidade do ego para o si-mesmo, do homem para Deus; o que quer dizer que o eu desaparece no si-mesmo, e o homem em Deus. É evidente que Sri Ramana ou foi amplamente absorvido pelo si-mesmo, ou pelo menos se esforça, seriamente, por dissolver seu próprio eu no si-mesmo. Tal empenho aparece nos Exercitia Spiritualia, ao subordinarem o seu “bem-privado”, o próprio eu, ao domínio supremo de Cristo. Ramakrishna, contemporâneo mais velho de Sri Ramana, adota a mesma posição que este em relação ao si-mesmo; só que, no seu caso, o dilema entre o eu e o si-mesmo se destaca com mais evidência. Enquanto Sri Ramana mostra uma tolerância “compreensiva” para a profissão ocidental de seus discípulos, fazendo no entanto claramente da dissolução do eu o fim essencial e o propósito da prática espiritual, Ramakrishna revela uma atitude um pouco menos segura a esse respeito. Verdade é que ele afirma: “Enquanto houver procura do eu, é impossível chegar ao conhecimento (jñana) ou à libertação (mukti), e os nascimentos e as mortes nunca terão fim”(3). Mas é forçado a reconhecer a implacabilidade total do ahamkara: “Quão poucos são os que conseguem alcançar a união (samadhi) e se libertar desse eu (aham). Raras vezes se consegue isso(4). Discute o quanto quiseres; distingue sem parar – este eu sempre voltará a ti(5). Corta hoje o choupo, e verá amanhã que ele brotou de novo”(6). Ele chega ao ponto de indicar a indestrutibilidade do eu, com as seguintes palavras: “Se no final não puderes destruir esse ‘eu’, trata-o como ‘eu, o escravo'”(7). Diante dessa concessão ao eu, Sri Ramana é decididamente mais radical e mais conservador na linha da tradição hindu, enquanto Ramakrishna, sendo o mais velho e mais moderno dos dois, o que se deve atribuir ao fato de ter sido tocado muito mais profundamente e mais fortemente pela mentalidade ocidental do que Sri Ramana.
Se o considerarmos como o compêndio da totalidade psíquica (isto é, como a totalidade constituída pela consciência e pelo inconsciente), o si-mesmo representa, de fato, um dos escopos da evolução psíquica, e isso independentemente de quaisquer opiniões ou expectativas conscientes. Ele representa o conteúdo de um processo que, em geral, se desenrola até mesmo fora da esfera da consciência e só revela sua presença por uma espécie de ação à distância sobre essa última. Uma atitude crítica no confronto com esse processo natural permite-nos levantar questões que a fórmula “si-mesmo = Deus” a rigor exclui de antemão. Essa fórmula mostra-nos que o motivo religioso-ético inequívoco é a dissolução do eu no Atman, tal qual o vemos exemplificado na vida e no pensamento de Sri Ramana. É evidente que isso também vale para a mística cristã que, em última análise, só se distingue da filosofia oriental por adotar uma terminologia diferente. Uma consequência inevitável que daí resulta é a supressão do homem físico e psíquico (do corpo vivo e do ahamkara), em favor do homem pneumático. Sri Ramana, por exemplo, chama seu corpo de “este cepo aí”. O ponto de vista cristão, ao invés disso, e levando em consideração a natureza complexa da experiência (emoção + interpretação), não retira à consciência do eu a importância de sua função, sabendo claramente que sem ahamkara não haveria alguém para conhecer tal acontecimento. Sem o eu pessoal do Maharshi que, como nos mostra a experiência, ocorre justamente com o seu “cepo” (= corpo), que lhe é inerente, nunca teria existido um Sri Ramana. Mesmo reconhecendo que não é o seu eu que falará doravante, mas o Atman, ainda assim precisamos dizer que é a estrutura psíquica da consciência e o corpo que nos proporcionam a comunicação no plano da palavra. Sem o homem físico e psíquico, por certo bastante discutível, o si-mesmo é inteiramente destituído de objeto, como já dizia Angelus Silesius:
“Sei que sem mim
Deus não pode viver um só momento,
Ele morreria de carência
com o meu aniquilamento.” (8)
O caráter finalístico a priori do si-mesmo e a tendência a realizar essa finalidade existem, como já foi dito, mesmo sem a participação da consciência. Eles não podem ser negados, mas também não é possível passar sem a consciência do eu. Este também tem suas exigências imperiosas, muitas vezes em contradição aberta ou velada com sua necessidade de auto-realização. Na verdade, isso significa que, à parte alguns casos excepcionais, a entelequia do si-mesmo consiste em uma série longa e interminável de compromissos, na qual o eu e o si-mesmo se contrabalançam fatigosamente para que tudo corra bem. Por isso, muitas vezes, um desvio excessivo para um lado ou para o outro representa, quando entendido em sentido mais profundo, nada mais nada menos do que um exemplo de como não se deveria fazê-lo. Com isso não queremos dizer que os extremos, quando ocorrem por via natural, sejam “eo ipso” de providência maligna. Por certo faremos um uso correto deles se examinarmos bem o seu sentido, e para isso, graças a Deus, eles nos oferecem abundantes ocasiões. Homens excepcionais, esmerados e bem formados, são sempre uma dádiva divina ou um produto infernal. A degradação começa com a ausência de moderação, ainda que o obscurecimento da consciência, que lhe é intrínseca, pareça tornar a consecução do fim supremo o mais próxima possível. Só a capacidade de reflexão, num grau mais alto e mais intenso, constitui um benefício verdadeiro e duradouro.
Fora as banalidades, infelizmente não existem afirmações filosóficas ou psicológicas que, em breve, não tenham de sofrer distorções. Assim é que a reflexão, como um fim em si mesmo, apenas significa estreiteza intelectual, quando não se afirma em meio a confusão de extremos caóticos, do mesmo modo que o mero dinamismo, como fim em si mesmo, conduz ao embrutecimento mental. Cada coisa precisa de seu oposto, para poder existir; se não se evaporará no puro nada. O eu precisa do si-mesmo, e vice-versa. As relações cambiantes entre as duas grandezas constituem um campo de experiência que o conhecimento introspectivo do Oriente explorou em proporções quase inalcançáveis pelo homem ocidental. A filosofia do Oriente, tão profundamente diferente da nossa, é para nós uma dádiva de valor incalculável; entretanto, “precisamos conquistá-la para poder possuí-la”. As palavras de Sri Ramana, que Zimmer nos deixou como último presente de sua pena, em excelente alemão, resumem mais uma vez o que de mais nobre o espírito da Índia acumulou em sua contemplação interior, no decurso de milênios, enquanto a vida e a obra individual do Maharshi exemplificam e ilustram a ânsia profunda dos povos da Índia pela causa primeira e a última da redenção. Empreguei a expressão “mais uma vez”, pois a Índia está prestes a dar o passo fatídico que a transformará em Estado independente, entrando assim na comunidade das nações cujos princípios diretivos tem tudo no seu programa, menos a “solidão” e a paz da alma.
Os povos orientais estão sob a ameaça de uma desagregação de seu patrimônio espiritual, e o que os substitui nem sempre pode ser considerado como o que de melhor existe no espírito ocidental. Por isso, podemos considerar as figuras de Ramakrishna e Sri Ramana como profetas modernos aos quais cabe, em relação ao seu povo, a mesma função compensadora que os profetas do Antigo Testamento desempenharam em relação ao povo “rebelde” de Israel. Eles não lembram apenas a cultura milenar da Índia, como corporificam praticamente essa cultura, constituindo assim uma exortação impressionante a que não sejam negligenciadas as exigências profundas da alma, além de qualquer novidade com a civilização ocidental e seu imanentismo tecnicista, materialista e comercial lhes possam oferecer. O impulso febril de conquista e de dominação no plano político, social e espiritual, que convulsiona a alma do Ocidente com uma paixão aparentemente insopitável, se difunde, sem parar, no Oriente, ameaçando produzir consequências imprevisíveis. Muita coisa já se perdeu, não só na Índia como na China, onde outrora vivia e prosperava a alma. A alienação na cultura pode acabar com muitos inconvenientes cuja eliminação parece sumamente desejável e vantajosa, mas esse progresso, por outro lado, tem sido pago com o preço demasiado alto da perda da cultura da alma, como nos mostra a experiência. Não há dúvida de que é muito mais confortável morar numa casa bem ordenada e instalada segundo os requisitos da higiene, mas com isso não se resolve a questão de saber quem é o habitante dessa casa e se sua alma também goza da mesma ordem e do mesmo asseio que a morada que serve à vida exterior. Ensina-nos a experiência que o homem voltado excessivamente para as coisas exteriores nunca se contentará com o estritamente necessário, ambicionando sempre o mais e o melhor, que ele, fiel aos seus preconceitos, busca no exterior. Assim procedendo, se esquece por completo de que interiormente continua sempre o mesmo, apesar de todos os sucessos exteriores, e é por isso que se queixa de sua pobreza quando só possui um carro, ao invés de dois, como os outros. Não há dúvida de que a vida do homem comporta ainda muitas melhorias e embelezamentos, mas tais coisas perdem o seu sentido quando o homem interior não as acompanha. É claro que saciar-se com todo o “necessário” pode ser uma fonte considerável de bem-estar, mas acima de tudo está o homem interior, proclamando suas exigências que não podem ser satisfeitas com bens exteriores. E quanto menos se prestar ouvidos a essa voz, que ultrapassa a busca incontida das glórias deste mundo, tanto mais homem interior se converterá numa fonte de inexplicáveis fracassos e de incompreendida infelicidade. A tendência ao puramente exterior pode transformar-se em enfermidade incurável, porque ninguém é capaz de compreender por que deve ser causa do próprio sofrimento. Ninguém se espanta com a própria insaciabilidade, considerando-a um seu direito normal, sem perceber que a unilateralidade da dieta psíquica conduz finalmente aos mais graves desequilíbrios. É dessa doença que o ocidental sofre e não descansará enquanto não tiver contaminado o mundo inteiro com sua agitação febril e sua cobiça desenfreada.
É justamente por isso que a sabedoria e a mística do Oriente tem tanta coisa a dizer-nos, embora falem uma linguagem própria e impossível de ser imitada. Elas devem lembrar-nos aquilo que temos de semelhante em nossa cultura, mas que já esquecemos, e dirigir nossa atenção para o destino de nosso homem interior. Não se trata de um mero “document humain“, mas de uma mensagem e de uma advertência ao gênero humano ameaçado de se perder no caos de sua inconsciência e falta de controle. Por isso talvez, e se o entendermos numa perspectiva mais profunda, não terá sido por mero acaso que o último livro de Heinrich Zimmer nos transmite, quase como testamento, a biografia de um moderno profeta hindu, que ilustra de forma tão incisiva o problema da transformação psíquica.
» por Carl Gustav Jung (1875-1961) (Heinrich Zimmer vinha se interessando há muitos anos pelo Maharshi de Tiruvannamalai, e a primeira pergunta que me fez, quando voltei de minha viagem à Índia, foi a respeito desse novo santo e sábio da Índia Meridional. Não sei se meu amigo considerava um pecado imperdoável, ou pelo menos incompreensível, de minha parte, o fato de não ter ido visitar Sri Ramana. Minha impressão era de que dificilmente ele teria deixado de fazer tal visita, tão calorosa era a sua participação na vida e no pensamento desse santo. Isso não me surpreendia, porquanto eu sabia com que profundidade Zimmer penetrara no espírito da Índia. Seu mais ardente desejo, que era o de ver a Índia pessoalmente em sua realidade, infelizmente não chegou a materializar-se, e a oportunidade que teve para isso desvaneceu-se às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Ele possuía uma visão grandiosa da Índia espiritual.
Zimmer me proporcionou, num trabalho de colaboração, inestimáveis conhecimentos da alma oriental, não só pela sua especialização, como principalmente por sua compreensão genial do sentido da mitologia hindu. Cumpriu-se, infelizmente, o ditado segundo o qual os prediletos dos deuses morrem prematuramente, e resta-nos apenas lamentar a perda de um espírito que venceu as limitações de um saber especializado e, voltado para a Humanidade, proporcionou-lhe o beatificante dom de “frutos imorredouros”.
O depositário da sabedoria mitológica da Índia tem sido, desde os tempos mais remotos, o “santo”, designação ocidental que não expressa com fidelidade a essência e a maneira de se manifestar dessa figura paralela do Oriente. Essa figura corporifica a Índia espiritual, e a encontramos muitas vezes na literatura. Por isso, não é de admirar que Zimmer se interessasse apaixonadamente pela encarnação mais recente e mais perfeita desse espécime na pessoa de Sri Ramana. Ele via nesse yogi a realização avatárica da figura ao mesmo tempo lendária e histórica do rishi, o vidente e filósofo perambulante através dos séculos e dos milênios.
Tudo indica q eu deveria ter visitado Sri Ramana. Receio, porém, que me acontecesse a mesma coisa, se eu tivesse de voltar à Índia para recuperar as oportunidades perdidas, ou seja, que, não obstante se tratar de um tipo único e irrepetível, me faltasse, mais uma vez, o ânimo de visitá-lo pessoalmente, ainda que seja inegável o fato de tratar-se de figura de grande significação. Gostaria, no entanto, de dizer que duvido de sua irrepetibilidade. Ele é um tipo que existiu e sempre existirá. Por isso achei desnecessário visitá-lo. Vi-o por toda parte, na vida e na figura de Ramakrishna, nos discípulos deste último, nos monges budistas, nos personagens da vida cotidiana da Índia, e as palavras de sua sabedoria são o sous entendu (o substrato) da vida da alma da Índia. Nesse sentido, não há dúvida de que Sri Ramana é um hominum homo, um verdadeiro “filho do homem” da terra hindu. É autêntico e, ainda mais, é um fenômeno que, visto na perspectiva da Europa, reivindica sua singularidade. Mas na Índia ele é o ponto mais alvo de uma superfície alva (cuja alvura só mencionamos porque existem outras tantas superfícies negras). Na Índia, ademais, vê-se tanta coisa que afinal se gostaria de ter visto muito menos, e a imensa variedade de regiões e de tipos humanos produz um desejo profundo de simplicidade. E também existe simplicidade na Índia: ela impregna a vida psíquica do hindu como um perfume ou uma melodia: sempre a mesma em toda a parte, mas nunca monótona e sim variando sempre ao infinito. Para conhecê-la, basta ler uma Upanishad ou alguns diálogos de Buddha. Neles ressoa o eco do que se ouve por toda parte, falando-nos através de milhões de olhos e expressando-se em um sem número de gestos. E não há aldeia nem estrada principal que não tenha aquela árvore de largos ramos a cuja sombra o ego não busque sua própria supressão, afogando no universo e na unidade comum o mundo da multiplicidade das coisas. Eu senti esse apelo na Índia a tal ponto, que depois não conseguia desvencilhar-me de sua força persuasiva. Eu estava, portanto, convencido de que ninguém era capaz de superá-lo, e menos ainda o sábio. E se Sri Ramana dissesse alguma coisa que destoasse dessa melodia, ou pretendesse saber mais do que isso, em qualquer das hipóteses o iluminado estaria errado. Foi essa laboriosa argumentação, perfeitamente concordante com o calor do clima da Índia Meridional – se o santo está certo, ele reproduz fielmente o antigo tom da Índia; se lhe empresta uma nota diversa, está errado – que me impediu de visitar Tiruvannamalai, e disso não me arrependi.
Foi justamente esse caráter impenetrável da Índia que me proporcionou a ocasião de encontrar o santo, e isso de maneira muito mais cômoda para mim, e sem que o tivesse procurado: em Trivandrum, capital de Travancore, encontrei um dos discípulos do Maharshi. Era uma figura humilde e seu status social, o de um professor primário, fez-me lembrar vivamente o sapateiro de Alexandria que foi apresentado (na descrição de Anatole France) a Santo Antão, pelo anjo, como um modelo de santo muito mais perfeito do que ele. Meu pequeno Santo tinha, em relação ao grande, a vantagem de ter de alimentar numerosa prole e de cuidar, à custa de muito sacrifício, dos estudos de seu filho mais velho. (Não pretendo desviar a atenção para o problema de saber se os santos são sempre sábios e, vice-versa, se os sábios são sempre santos. Há algumas dúvidas a esse respeito). Seja como for, nessa figura humilde, amável e piedosa como uma criança, encontrei um homem que sorveu, de um lado, e com toda a dedicação, a sabedoria do Maharshi, e, de outro, superou seu próprio mestre, por ter “comido o mundo”, apesar de toda a sua circunspecção e santidade. Considero esse encontro como uma grande gratidão, pois nada de melhor poderia ter-me acontecido. O puro sábio e o puro santo me interessam tanto como um raro esqueleto de sáurio, incapaz de me comover até às lágrimas. Mas fascinou-me a estranha contradição entre o seu ser subtraído à maya (ilusão) no si-mesmo cósmico e a fraqueza amorosa que mergulha fecundamente suas raízes na terra negra, para repetir, como eterna melodia da Índia, para sempre o trabalho de urdidura e o do rasgar-se do véu; sim, essa contradição me fascinou, pois, de outro modo, como se poderia ver a luz sem a sombra, sentir o silêncio sem o barulho, alcançar a sabedoria sem a estultícia? Não há dúvida de que a mais dolorosa experiência é a da santidade. Nosso homem – Deus seja louvado – era apenas um pequeno santo: não um cume se projetando por sobre abismos tenebrosos, nem um jogo emocionante da natureza, mas uma demonstração de que a sabedoria, a santidade e o humano podem “conviver harmoniosamente entre si”, numa relação rica de ensinamentos, amigável, pacífica, sem convulsões nem singularidades, sem espanto nem sensacionalismo de qualquer espécie, e sem necessidade de uma agência especial de correio; mas cultura a brotar de suas raízes mais antigas e primitivas, envolta na atmosfera suave e inebriante dos coqueiros que balouçam ao sopro do vento marinho, sentidos mergulhados na fantasmagoria do ser, correndo soltos e em disparadas: libertação da escravidão, vitória na derrota.
É na literatura que melhor se apresenta a pura santidade e a pura sabedoria, e aí sua fama está fora de discussão. No Tao Te King lê-se o que de melhor nos oferece Lao Tsé. Mas um Lao Tsé celebrando o entardecer de sua vida em companhia de uma dançarina na vertente ocidental da montanha já é menos edificante. É impossível, por razões facilmente compreensíveis, concordar com o desprezo do corpo do puro santo, especialmente quando se acredita que a beleza está incluída entre o que de mais nobre Deus criou.
As idéias de Sri Ramana são de agradável leitura. Nelas encontramos a Índia mais pura, com sua aura de eternidade, arrebatada e ao mesmo tempo nos arrebatando do mundo, um cântico dos milênios que reproduz, como o cantar dos grilos numa noite de verão, as vozes e os sons de milhares de seres. Essa melodia é construída sobre o único grandioso tema que, dissimulando sem esmorecimento sua monotonia em reflexos de mil cores, rejuvenesce eternamente no espírito da Índia, e cuja encarnação mais recente não é senão o próprio Sri Ramana: é o drama do ahamkara (a “formação do ego” ou da consciência do eu) em sua oposição e em sua indissolúvel união com o Atman (o si-mesmo ou o non-ego). O Maharshi também denomina o Atman do “Eu-Eu”, muito significativamente, portanto, visto que o si-mesmo é sentido como sujeito do sujeito, como a verdadeira fonte e o verdadeiro canal do eu cuja aspiração constante (e errônea) é apropriar-se daquela autonomia cuja percepção deve justamente ao si-mesmo.
Esse conflito também é conhecido pelo ocidental: para este, trata-se da relação entre o homem e Deus. A Índia moderna assumiu em larga escala, e posso confirmá-lo por minha própria experiência, a terminologia européia: o “si-mesmo”, ou Atman, e Deus são termos essencialmente sinônimos. Mas, com uma certa diferença em relação ao binômio ocidental “homem e Deus”, tanto a oposição como a concordância estão expressas nos termos “eu e si-mesmo”. Ao contrário do conceito de “homem”, o conceito de “eu”, como se nos configura, é marcadamente psicológico. Por isso, estaríamos inclinados a pensar que o problema metafísico “homem e Deus” foi deslocado para o plano psicológico. Mas, se pensarmos bem, verificaremos que não é assim, pois a noção hindu de “eu” e de “si-mesmo” não é propriamente psicológica, mas – poderíamos dizer – tão metafísica quanto a de “homem e Deus”. Falta ao hindu, tanto quanto à nossa linguagem religiosa, a perspectiva da teoria do conhecimento. O hindu é ainda “pré-kantiano”. Essa complicação é desconhecida na Índia, como também entre nós, em amplos setores. Por isso não há na Índia uma psicologia, no sentido ocidental do termo. A Índia é “pré-psicológica”, isto é, quando fala no “si-mesmo”, ela o pensa como objetivamente existente. A psicologia não faz assim. Com isso não pretende negar, de modo algum, a existência do conflito, mas reserva para si a pobreza ou a riqueza do seu desconhecimento acerca do si-mesmo. Não resta dúvida de que temos uma fenomenologia sui generis e paradoxal do si-mesmo, mas percebemos muito bem que identificamos algo de desconhecido através de meios limitados, e o expressamos em estruturas psíquicas sem saber se elas são adequadas ou não à natureza daquilo que queremos conhecer.
As limitações inerentes à crítica do conhecimento nos distanciam daquilo que designamos pelas expressões “si-mesmo” ou “Deus”. A equação “si-mesmo = Deus” parece repugnar ao pensamento europeu. Por isso, ela é, como o demonstram as afirmações de Sri Ramana e muitas outras, um conhecimento especificamente oriental, e a psicologia nada tem a acrescentar-lhe, fugindo inteiramente à sua competência estabelecer uma tal distinção. Psicologicamente, a única afirmação que se pode fazer é que o “si-mesmo” apresenta uma sintomatologia religiosa parecida com a daquele complexo de afirmações que vem associado ao termo “Deus”. Embora o fenômeno religioso da “emoção” ultrapasse os limites da crítica do conhecimento, por ser-lhe incomensurável, aspecto esse que tem em comum com todas as manifestações de caráter emocional, o impulso humano em direção ao conhecimento impõe-se constantemente, com uma pertinácia e uma teimosia “antidivina” ou “luciferiana”, e mesmo com uma certa necessidade, para lucro ou dano do homem pensante. Por isso mesmo, mais cedo ou mais tarde o homem se oporá numa atitude puramente cerebral à sua emoção e procurará subtrair-se ao jugo do impulso emocional, para poder perceber o que lhe acontece. Se agir com circunspecção e consciência, ele tornará a descobrir que pelo menos uma parcela de suas experiências representa uma interpretação humanamente limitada, tal como a visão da serpente de muitos olhos, de Inácio de Loyola, que inicialmente ele julgou de natureza divina, concluindo mais tarde que provinha do diabo(2). Para o hindu, é evidente que o si-mesmo não se distingue de Deus, como fonte psíquica, e que o homem, por se achar em seu si-mesmo, não apenas está contido em Deus, como também é o próprio Deus. Sri Ramana, por exemplo, é explícito a esse respeito. Não há dúvida de que essa equação é uma interpretação. Como também é uma interpretação conceber o si-mesmo como o “Sumo Bem” ou como a finalidade plenificante e desejável, embora a fenomenologia dessa experiência não permita duvidar que essas características são partes integrantes, essenciais e prévias da emoção. Mas isso também não impede que a razão crítica levante a questão da validade dessas qualidades. Na verdade, é impossível saber como ela poderá responder a essa questão, pois lhe falta qualquer critério. O que talvez pudesse servir de critério está também sujeito, por seu lado, ao problema da validade. Aqui só a preponderância do fato psíquico é que decidirá.
O objetivo da prática oriental é idêntico ao da mística ocidental: desloca-se o centro de gravidade do ego para o si-mesmo, do homem para Deus; o que quer dizer que o eu desaparece no si-mesmo, e o homem em Deus. É evidente que Sri Ramana ou foi amplamente absorvido pelo si-mesmo, ou pelo menos se esforça, seriamente, por dissolver seu próprio eu no si-mesmo. Tal empenho aparece nos Exercitia Spiritualia, ao subordinarem o seu “bem-privado”, o próprio eu, ao domínio supremo de Cristo. Ramakrishna, contemporâneo mais velho de Sri Ramana, adota a mesma posição que este em relação ao si-mesmo; só que, no seu caso, o dilema entre o eu e o si-mesmo se destaca com mais evidência. Enquanto Sri Ramana mostra uma tolerância “compreensiva” para a profissão ocidental de seus discípulos, fazendo no entanto claramente da dissolução do eu o fim essencial e o propósito da prática espiritual, Ramakrishna revela uma atitude um pouco menos segura a esse respeito. Verdade é que ele afirma: “Enquanto houver procura do eu, é impossível chegar ao conhecimento (jñana) ou à libertação (mukti), e os nascimentos e as mortes nunca terão fim”(3). Mas é forçado a reconhecer a implacabilidade total do ahamkara: “Quão poucos são os que conseguem alcançar a união (samadhi) e se libertar desse eu (aham). Raras vezes se consegue isso(4). Discute o quanto quiseres; distingue sem parar – este eu sempre voltará a ti(5). Corta hoje o choupo, e verá amanhã que ele brotou de novo”(6). Ele chega ao ponto de indicar a indestrutibilidade do eu, com as seguintes palavras: “Se no final não puderes destruir esse ‘eu’, trata-o como ‘eu, o escravo'”(7). Diante dessa concessão ao eu, Sri Ramana é decididamente mais radical e mais conservador na linha da tradição hindu, enquanto Ramakrishna, sendo o mais velho e mais moderno dos dois, o que se deve atribuir ao fato de ter sido tocado muito mais profundamente e mais fortemente pela mentalidade ocidental do que Sri Ramana.
Se o considerarmos como o compêndio da totalidade psíquica (isto é, como a totalidade constituída pela consciência e pelo inconsciente), o si-mesmo representa, de fato, um dos escopos da evolução psíquica, e isso independentemente de quaisquer opiniões ou expectativas conscientes. Ele representa o conteúdo de um processo que, em geral, se desenrola até mesmo fora da esfera da consciência e só revela sua presença por uma espécie de ação à distância sobre essa última. Uma atitude crítica no confronto com esse processo natural permite-nos levantar questões que a fórmula “si-mesmo = Deus” a rigor exclui de antemão. Essa fórmula mostra-nos que o motivo religioso-ético inequívoco é a dissolução do eu no Atman, tal qual o vemos exemplificado na vida e no pensamento de Sri Ramana. É evidente que isso também vale para a mística cristã que, em última análise, só se distingue da filosofia oriental por adotar uma terminologia diferente. Uma consequência inevitável que daí resulta é a supressão do homem físico e psíquico (do corpo vivo e do ahamkara), em favor do homem pneumático. Sri Ramana, por exemplo, chama seu corpo de “este cepo aí”. O ponto de vista cristão, ao invés disso, e levando em consideração a natureza complexa da experiência (emoção + interpretação), não retira à consciência do eu a importância de sua função, sabendo claramente que sem ahamkara não haveria alguém para conhecer tal acontecimento. Sem o eu pessoal do Maharshi que, como nos mostra a experiência, ocorre justamente com o seu “cepo” (= corpo), que lhe é inerente, nunca teria existido um Sri Ramana. Mesmo reconhecendo que não é o seu eu que falará doravante, mas o Atman, ainda assim precisamos dizer que é a estrutura psíquica da consciência e o corpo que nos proporcionam a comunicação no plano da palavra. Sem o homem físico e psíquico, por certo bastante discutível, o si-mesmo é inteiramente destituído de objeto, como já dizia Angelus Silesius:
Deus não pode viver um só momento,
Ele morreria de carência
com o meu aniquilamento.” (8)
O caráter finalístico a priori do si-mesmo e a tendência a realizar essa finalidade existem, como já foi dito, mesmo sem a participação da consciência. Eles não podem ser negados, mas também não é possível passar sem a consciência do eu. Este também tem suas exigências imperiosas, muitas vezes em contradição aberta ou velada com sua necessidade de auto-realização. Na verdade, isso significa que, à parte alguns casos excepcionais, a entelequia do si-mesmo consiste em uma série longa e interminável de compromissos, na qual o eu e o si-mesmo se contrabalançam fatigosamente para que tudo corra bem. Por isso, muitas vezes, um desvio excessivo para um lado ou para o outro representa, quando entendido em sentido mais profundo, nada mais nada menos do que um exemplo de como não se deveria fazê-lo. Com isso não queremos dizer que os extremos, quando ocorrem por via natural, sejam “eo ipso” de providência maligna. Por certo faremos um uso correto deles se examinarmos bem o seu sentido, e para isso, graças a Deus, eles nos oferecem abundantes ocasiões. Homens excepcionais, esmerados e bem formados, são sempre uma dádiva divina ou um produto infernal. A degradação começa com a ausência de moderação, ainda que o obscurecimento da consciência, que lhe é intrínseca, pareça tornar a consecução do fim supremo o mais próxima possível. Só a capacidade de reflexão, num grau mais alto e mais intenso, constitui um benefício verdadeiro e duradouro.
Fora as banalidades, infelizmente não existem afirmações filosóficas ou psicológicas que, em breve, não tenham de sofrer distorções. Assim é que a reflexão, como um fim em si mesmo, apenas significa estreiteza intelectual, quando não se afirma em meio a confusão de extremos caóticos, do mesmo modo que o mero dinamismo, como fim em si mesmo, conduz ao embrutecimento mental. Cada coisa precisa de seu oposto, para poder existir; se não se evaporará no puro nada. O eu precisa do si-mesmo, e vice-versa. As relações cambiantes entre as duas grandezas constituem um campo de experiência que o conhecimento introspectivo do Oriente explorou em proporções quase inalcançáveis pelo homem ocidental. A filosofia do Oriente, tão profundamente diferente da nossa, é para nós uma dádiva de valor incalculável; entretanto, “precisamos conquistá-la para poder possuí-la”. As palavras de Sri Ramana, que Zimmer nos deixou como último presente de sua pena, em excelente alemão, resumem mais uma vez o que de mais nobre o espírito da Índia acumulou em sua contemplação interior, no decurso de milênios, enquanto a vida e a obra individual do Maharshi exemplificam e ilustram a ânsia profunda dos povos da Índia pela causa primeira e a última da redenção. Empreguei a expressão “mais uma vez”, pois a Índia está prestes a dar o passo fatídico que a transformará em Estado independente, entrando assim na comunidade das nações cujos princípios diretivos tem tudo no seu programa, menos a “solidão” e a paz da alma.
Os povos orientais estão sob a ameaça de uma desagregação de seu patrimônio espiritual, e o que os substitui nem sempre pode ser considerado como o que de melhor existe no espírito ocidental. Por isso, podemos considerar as figuras de Ramakrishna e Sri Ramana como profetas modernos aos quais cabe, em relação ao seu povo, a mesma função compensadora que os profetas do Antigo Testamento desempenharam em relação ao povo “rebelde” de Israel. Eles não lembram apenas a cultura milenar da Índia, como corporificam praticamente essa cultura, constituindo assim uma exortação impressionante a que não sejam negligenciadas as exigências profundas da alma, além de qualquer novidade com a civilização ocidental e seu imanentismo tecnicista, materialista e comercial lhes possam oferecer. O impulso febril de conquista e de dominação no plano político, social e espiritual, que convulsiona a alma do Ocidente com uma paixão aparentemente insopitável, se difunde, sem parar, no Oriente, ameaçando produzir consequências imprevisíveis. Muita coisa já se perdeu, não só na Índia como na China, onde outrora vivia e prosperava a alma. A alienação na cultura pode acabar com muitos inconvenientes cuja eliminação parece sumamente desejável e vantajosa, mas esse progresso, por outro lado, tem sido pago com o preço demasiado alto da perda da cultura da alma, como nos mostra a experiência. Não há dúvida de que é muito mais confortável morar numa casa bem ordenada e instalada segundo os requisitos da higiene, mas com isso não se resolve a questão de saber quem é o habitante dessa casa e se sua alma também goza da mesma ordem e do mesmo asseio que a morada que serve à vida exterior. Ensina-nos a experiência que o homem voltado excessivamente para as coisas exteriores nunca se contentará com o estritamente necessário, ambicionando sempre o mais e o melhor, que ele, fiel aos seus preconceitos, busca no exterior. Assim procedendo, se esquece por completo de que interiormente continua sempre o mesmo, apesar de todos os sucessos exteriores, e é por isso que se queixa de sua pobreza quando só possui um carro, ao invés de dois, como os outros. Não há dúvida de que a vida do homem comporta ainda muitas melhorias e embelezamentos, mas tais coisas perdem o seu sentido quando o homem interior não as acompanha. É claro que saciar-se com todo o “necessário” pode ser uma fonte considerável de bem-estar, mas acima de tudo está o homem interior, proclamando suas exigências que não podem ser satisfeitas com bens exteriores. E quanto menos se prestar ouvidos a essa voz, que ultrapassa a busca incontida das glórias deste mundo, tanto mais homem interior se converterá numa fonte de inexplicáveis fracassos e de incompreendida infelicidade. A tendência ao puramente exterior pode transformar-se em enfermidade incurável, porque ninguém é capaz de compreender por que deve ser causa do próprio sofrimento. Ninguém se espanta com a própria insaciabilidade, considerando-a um seu direito normal, sem perceber que a unilateralidade da dieta psíquica conduz finalmente aos mais graves desequilíbrios. É dessa doença que o ocidental sofre e não descansará enquanto não tiver contaminado o mundo inteiro com sua agitação febril e sua cobiça desenfreada.
É justamente por isso que a sabedoria e a mística do Oriente tem tanta coisa a dizer-nos, embora falem uma linguagem própria e impossível de ser imitada. Elas devem lembrar-nos aquilo que temos de semelhante em nossa cultura, mas que já esquecemos, e dirigir nossa atenção para o destino de nosso homem interior. Não se trata de um mero “document humain“, mas de uma mensagem e de uma advertência ao gênero humano ameaçado de se perder no caos de sua inconsciência e falta de controle. Por isso talvez, e se o entendermos numa perspectiva mais profunda, não terá sido por mero acaso que o último livro de Heinrich Zimmer nos transmite, quase como testamento, a biografia de um moderno profeta hindu, que ilustra de forma tão incisiva o problema da transformação psíquica.
- Texto (Introdução a Heinrich Zimmer, Der Weg zum Selbst. Lehre und Leben des indischen Heiligen Shri Ramana Maharshi aus Tiruvannamalei, Zurique, 1944) extraído do capítulo O Santo Hindu, publicado nas páginas 99 a 108 do livro Psicologia e Religião Oriental (Zur Psychologie westlicher und östlicher Religion), de Carl Gustav Jung (1875-1961), com tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha e revisão de Dora Ferreira da Silva, das Obras Completas de C. G. Jung, volume XI/5, Editora Vozes, 5ª edição, 1991, e digitado por Cristiano Bezerra (1971-) para este blog, Yoga Pleno, em 30 de janeiro de 2006. [↩]
- Cf., a esse respeito, a advertência de 1Jo 4,1: “Não acrediteis em qualquer espírito, mas examinai primeiro os espíritos, para ver se são de Deus”. [↩]
- Worte des Meisters, Zurique 1940 [↩]
- Grifo de C. G. Jung. [↩]
- Grifo de C. G. Jung. [↩]
- Op. cit., p. 85. [↩]
- Op. cit., p. 85. [↩]
- “Ich weiss, dass ohne mich
Gott nicht ein Nu kann leben,
Werd’ ich zu nicht, er muss
Von Noth den Geist aufgeben“. [↩]
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