Yoga e biopoder: liberdade ou nacionalismo?
De todas as distopias possíveis relacionadas ao Yoga, a pior que imaginei uns tempos atrás era a da proibição. No entanto, o uso do Yoga como instrumento do biopoder é muito pior.
Havendo passado a adolescência numa ditadura militar opressiva, o panorama mais cruel para mim seria ter que viver num lugar onde o Yoga fosse proibido, como aconteceu na defunta URSS ou acontece atualmente no Afeganistão.
Porém, nada tinha me preparado para o que estamos testemunhando neste mesmo instante: pior do que proibir o Yoga é torná-lo mandatório.
Através do Ministério do Yoga e o Ayurveda, o Primeiro Ministro indiano, Narendra Modi, fez uma modificação fundamental no Yoga: o fez obrigatório (2).
Ninguém deveria sentir-se obrigado a praticar Yoga. Isso é impossível, pois fere o próprio propósito fundamental do Yoga, a meta, que é a liberdade. Haja paradoxo.
Biopoder
A submissão dos corpos através do Yoga é algo muito inovador e recente no uso da medonha ferramenta que Michel Foucault chamou biopouvoir, ou biopoder.
Ele define o biopoder como “As numerosas e diversas técnicas para alcançar a subjugação dos corpos, o ‘controle das populações’ e o ‘poder sobre a vida'”.
“Isso foi sem dúvida um elemento indispensável no desenvolvimento do capitalismo. Este último não teria sido possível sem a inserção controlada dos corpos nas maquinárias da produção e o ajuste dos fenômenos da população aos processos econômicos”.
“As meninas muçulmanas começam a praticar Yoga antes do Dia Internacional do Yoga, em 21 de junho. O Primeiro Ministro, Narendra Modi, apela aos Ministros da Índia para fazer do Yoga um movimento massivo.” Reportagem publicada em 14 de junho de 2016 no Canal IndiaTV no YouTube. Você não precisa saber falar hindi para entender: apenas olhe para os rostos dessas meninas.
Yoga como instrumento de submissão
Assim, não é de se estranhar que, desde a declaração do Dia Internacional do Yoga pela Organização das Nações Unidas em 2015, as minorias religiosas da Índia tenham passado a sentir-se ameaçadas pela perspectiva de ver-se obrigadas a praticá-lo.
Abdul Rahim Qureshi, subsecretário do Conselho Panindiano de Direito Pessoal Muçulmano (All India Muslim Personal Law Board) disse que a decisão do estado de Rajastão de tornar obrigatória a prática de asanas e a Saudação ao Sol “é uma campanha para forçar rituais hindus sobre pessoas que não são hindus“.
O Yogi Adityanath, sacerdote-governador do estado de Uttar Pradesh, disse que as minorias que se opõem ao Yoga deveriam “abandonar o país ou afogar-se no mar”.
O RSS (Rashtriya Swayamsevak Sangh) é uma organização paramilitar de extrema direita e braço ideológico do BJP, partido que já foi comparado com as Juventudes Hitlerianas. Lembre-se que Mathuram Godse, o assassino de Mahatma Gandhi, pertenceu ao RSS.
Cabe lembrar também que Narendra Modi também militou no RSS quando era jovem.
Pois bem, esse partido, mais conhecido pela violência explícita contra as minorias e pelos acampamentos de treinamento paramilitar, aprovou um projeto de lei para tornar o Yoga obrigatório nas escolas e universidades da Índia, que tramita atualmente no Congresso.
O objetivo desses legisladores não é levar Moksha ou autoconhecimento para o povo, mas submeter os corpos das minorias através do biopoder, com a desculpa de resgatar o glorioso passado espiritual da Índia.
Qualquer indiano de religião cristã, budista, judaica ou islâmica ficaria muito preocupado com essa perspectiva. Nenhum grupo merece nem quer ser manipulado por um Estado intolerante.
Ninguém precisa ser submetido a esse tipo de constrangimento. Muito menos em nome do Dharma ou da espiritualidade.
Yoga para que?
Você pode, se quiser, praticar Yoga para melhorar a sua saúde ou qualidade de vida. Você pode praticar Yoga para conhecer a si mesmo e buscar Moksha.
Mas você não deveria ter que praticar Yoga para satisfazer às demandas de um grupo de extremistas dementes.
Imagine se isso acontecesse no Brasil. Ou imagine, por exemplo, se no Brasil um partido político impusesse uma prática religiosa sobre toda a população. O que você acha que iria acontecer?
Yoga fundamentalista não é Yoga
O Yoga não pode ser obrigatório. Principalmente quando você o despe da sua natureza real (que claramente transcende as religiões e os dogmas) e o apresenta apenas como uma herança exclusiva da espiritualidade hindu.
Para piorar as coisas ainda mais, o Ministério do Yoga não está promovendo o Yoga por causa do autoconhecimento nem da liberdade, seus objetivos primordiais, mas apenas como um conjunto de práticas nas quais se promove a competição para ver quem se contorce mais.
Por exemplo, na celebração do último Dia Internacional do Yoga, no passado 21 de junho de 2020, a ênfase do Ministério não foi em levar o Yoga para quem precisa, mas em promover competições e campeonatos de asana, distribuindo milhares e milhares de dólares em prêmios.
Esse dinheiro foi para os blogs das pessoas que fizessem as posturas mais cabeludas. Acredito que esses recursos poderiam ter sido melhor empregados. Isso é Yoga para ricos. E a Índia não é um país rico.
Falsos gurus, biopoderosos
Outro desdobramento da aplicação do biopoder ao Yoga é o surgimento de uma nova geração de falsos gurus, aboletados nos mecanismos do poder, que, ao invés de expor o autoconhecimento e mostrar o caminho para a liberdade, fazem exatamente o contrário.Essa nova leva de superstar-gurus é imensamente rica e poderosa, e igualmente altamente intolerante com aqueles que pensam/sentem diferente.
Honestamente, sinto medo quando vejo como apresentam o Yoga e a espiritualidade hindu de maneira tão falsa e distorcida. Isso é ser profundamente injusto com os rishis de outrora.
E olhando para o futuro próximo: qual é a imagem do Yoga que esses líderes estão projetando no mundo inteiro? Será que pessoas de bom senso irão ter algum interesse no Yoga quando ele é apresentado de forma tão sectária?
Fazendo o jogo dos intolerantes
O pior é que os descolados brancos do ocidente entram inocentemente no jogo, e, ao acreditar que defendem algo louvável, apenas reforçam a tirania.
Por exemplo, o PETA (People for the Ethical Treatment of Animals) aplaudiu o governo de Narendra Modi pela proibição dos abatedouros em algumas regiões da Índia.
O problema é quando as pessoas vinculadas com esses abatedouros, que são na sua maioria dalits (descastados, ou seja, sem casta) ou muçulmanos, são linchados por grupos paramilitares.
Há inúmeras razões pelas quais os matadouros do planeta inteiro deveriam ser certamente fechados, mas não ao custo das vidas daqueles que trabalham lá.
O mesmo vale para muitos professores de Yoga e Vedanta, tanto na Índia como no Brasil, que também entram no jogo perigoso de tentar justificar o injustificável em nome do Dharma.
Conclusão
O Ocidente não pode permitir-se entrar nesse jogo. Tampouco deveriam fazer isso as ONGs, nem os praticantes e professores de Yoga, Vedanta ou Tantra, nem os amantes da dança ou da música indianas.
É um fato que o mundo seria um lugar melhor se todos praticássemos Yoga e aplicássemos os seus valores no cotidiano. Mas isso não pode ser imposto à força. Enfiar o Yoga pela goela de quem não o deseja fere o princípio áureo da não-violência, ahimsa.
Os sincretismos religiosos visíveis para quem anda a pé pela Índia são muito mais policromos do que o RSS quer nos mostrar.
E, acredite: a policromia espiritual da Índia real é muito mais bela, rica e interessante do que o mundo monocromático idealizado pelos intolerantes que promovem essa iniciativa.
Como praticantes de Yoga penso que, no mínimo, precisamos dedicar um pensamento a este tema. Muito grato por nos acompanhar!
- Artigo originalmente publicado em 1º de julho de 2020 em yoga.pro.br, o site do Pedro [↩]
- Leia mais sobre isso em O que o yoga tem a ver com o avanço da extrema direita na Índia? (Nota do Editor) [↩]
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